
Tento o tempo inteiro fazer a minha parte nesse mundo contribuindo com tudo que acredito e acho justo. Todo o dinheiro que preciso e luto muito para obter acabo por usar em tentar fazer as pessoas entenderem que devem mudar o seu modo de agir em relação a vida e aos outros seres humanos. Creio que hoje não preciso disfarçar meu objetivo ou tentar ser política como sempre temos que fazer para que algumas poucas pessoas nos compreendam. Estou sempre lutando não só pelo meu futuro, mas pelo futuro das crianças que nem ainda chegaram a esse mundo. Não ter garantia quanto ao futuro não é o mesmo que perder uma eleição ou alguns pontos na bolsa de valores. Estou aqui para falar das gerações que ainda estão por vir. Estou aqui para falar daqueles que passam necessidade cujos apelos não são ouvidos. Estou aqui para falar dos incontáveis ciganos que são massacrados e acampamentos que são impensadamente destruídos. Estou aqui para falar de uma humanidade predadora e desrespeitosa que nos deixam sem lugar para onde ir e se refugiar dessa incontida maldade. Não podemos mais permanecer ignorados. Hoje, por vezes, tenho medo de falar que sou cigana por causa dos atritos religiosos, dos preconceitos indefinidos muitas das vezes velados e o racismo em todas as suas manifestações. Tenho medo de me auto declarar como alguns não ciganos fazem. Pois nós que somos de origem não vamos conseguir reverter à situação depois e os outros sim, pois é só trocar a roupa e mostrar sua verdadeira origem.
Antes de saber a verdadeira história de minha raça nada me entristecia, eu dançava, cantava e podia dormir em paz. Até o dia que comecei a passar certos constrangimentos por conta de preconceitos velados e tomei conhecimento do que acontecem nas outras partes do mundo com os ciganos. Acho que cresci e passei a entender e enxergar a verdade do mundo em que vivemos.
Tive conhecimento que os ciganos estão sendo destruídos a cada dia e em vias de extinção. Não só em certos países do mundo estão esterilizando as mulheres sem que elas saibam ou permitam, como também tentando eliminar o que sobrou de sua cultura e tradição. Durante toda a minha vida sonhei ver as pessoas recebendo e querendo conhecer o diferente. Fui criada não sabendo das fronteiras que o homem inventou para separar humanos de humanos. Não sabia da existência desse muro invisível e até hoje não compreendo muito desses valores tão inúteis em nossa concepção de vida. Mas agora eu me pergunto: o que será de nossas crianças? Teremos que esquecer nossa forma de ver a vida e ensinar-lhes que existem esses limites? Teremos que lhes ensinar que não temos lugar no mundo por não possuirmos um país de origem? E nossa tradição de itinerância deve ser esquecida?
Alguns se preocupam com essas coisas, mas é uma minoria. Todas essas coisas acontecem bem diante do olhar mundial e mesmo assim continuam agindo como se tivéssemos todo o tempo do mundo e todas as soluções. Deturpam nossos procedimentos tomados quando estamos em desvantagem e culpa-nos apontando a toda uma etnia como criminosos e marginais. Somos apenas pessoas normais de uma cultura diferente e não temos as soluções para o problema mundial. Mas quero que saibam que, apesar de tantas políticas inventadas para tentar resolver problemas que na realidade foi causado pelos mesmos que se defendem se mostrando preocupados, vocês também não tem a solução para nada relativo a nosso povo.
Vocês não nos conhecem para saberem solucionar um problema que foi causado pelo sistema político mundial. Vocês não sabem como agir para salvar nossa cultura que se extingue por termos que acatar as políticas públicas feitas para nossa raça por pessoas que a ela não pertencem. Vocês não podem ressuscitar nossos clãs extintos nas guerras que passamos por ter ignorado nossa cultura por tanto tempo. Vocês não podem recuperar nossa alegria de viver livre, sem medo, sem limites ou fronteira. Vocês não podem recuperar a inocência perdida de nossas crianças que eram ensinadas com liberdade e hoje são escravizadas por terem que aprender o que há de maldade no mundo a fim de aprenderem a se defender ou se esconder.
Se vocês não podem solucionar e recuperar nada disso, então, por favor, parem de destruir!
Vocês que são representantes, governantes, homens de negócios, administradores, jornalistas ou políticos, mas na verdade também são mães, pais, irmãos e todos também são filhos.
Sou apenas uma mulher cigana, mas sei que todos nós pertencemos a uma sólida família de aproximadamente cinco bilhões de pessoas das mais variadas espécies. Compartilhamos o mesmo ar, a mesma água e o mesmo solo onde nenhum governo ou fronteira poderá mudar essa realidade. Sou apenas uma pessoa comum, mas esses problemas atingem a todos nós e deveríamos agir e reagir às contrariedades que aparecerem nos caminhos como se fossemos um único ser rumo a um único objetivo.
Apesar da minha revolta não estou cega. Apesar do meu medo, não sinto medo agora de dizer ao mundo como me sinto e quem eu sou, até porque não tenho como mudar isso.
A maioria dos paises do mundo gera muito desperdício. Compram e jogam fora o tempo todo. Os países mais ricos não compartilham com os que precisam mesmo quando tem mais que o suficiente. Acho que eles têm medo de perder suas riquezas ou compartilha-las. Os ciganos do Brasil até que tem uma sobrevida mais privilegiada ao observarmos os dos outros cantos do mundo. Mas a solução para os ciganos, principalmente os do Continente Europeu, seria a solução para todos os ciganos do mundo.
Quando fomos a uma das muitas vezes fazer uma doação em um dos acampamentos existentes aqui no Brasil, levamos uma antropóloga que observou que as crianças não tinham um brinquedo sequer. Levamos alimentos, roupas e brinquedos para serem distribuídos. Quando iniciou a distribuição dos brinquedos, uma das crianças que havia recebido dois brinquedos saiu correndo para dar um ao amiguinho ao lado. Em outro episódio no mesmo dia, quando houve a distribuição dos alimentos, a cigana que estava distribuindo, pegou a primeira resma de alimento e pediu para uma das ciganas ir cozinhando para as crianças logo a seguir. Assim tudo era dividido.
Algum tempo depois fiquei muito chocada quando vi uma criança cigana falando:
“Eu gostaria de ser rica e, se fosse, daria a todas as crianças do mundo alimentos, roupas, remédios, moradia, carinho e amor”
Se uma criança cigana que nada tem ainda deseja compartilhar, porque aqueles que tudo tem são tão mesquinhos ainda?
Não posso deixar de pensar que essa criança tem a mesma idade que muitos dos filhos de todos, mas que o lugar onde nasceram e sua etnia fazem a grande diferença. Seu filho poderia ser uma daquelas crianças que vivem debaixo das lonas de um acampamento cigano.
Sou apenas uma cigana, mas ainda assim sei que se todo o dinheiro gasto nas guerras fosse utilizado para acabar com a pobreza, para achar soluções para os ciganos sem rumo e a deriva no mundo, que lugar maravilhoso a Terra seria!
Eu, como cigana que freqüentei escola, era ensinada o tempo inteiro a ser comportada. Era ensinada a não brigar com os outros, resolver as coisas por bem, respeitar aos mais velhos e a todas as outras pessoas, arrumar nossas bagunças, não maltratar outras criaturas, dividir e não ser mesquinha. Apesar de ver que o discurso era o mesmo de casa, não conseguia entender porque as outras crianças não aprendiam, pois sempre faziam o oposto. Por isso foi muito difícil minha estada na escola.
E vocês? Porque fazem justamente o que nos ensinaram a não fazer? Não esqueçam os motivos de tantas conferências, seminários e simpósios e de para quem vocês fazem isso. Gostaria que nos vissem como seus próprios filhos, pais, mães, irmãos... Vejam que, muitas das vezes, vocês estão decidindo em que tipo de mundo nossas crianças irão crescer. Os pais devem ser capazes de confortarem seus filhos dizendo-lhes que tudo ficará bem e que estão fazendo o melhor que podem. Mas não acredito que possam nos dizer isso hoje. Estamos sequer em suas listas de prioridades?
Meu avô sempre dizia: “Você é aquilo que faz, não aquilo que você diz”. Bem... O que vocês fazem nos faz chorar a noite. Muitas das vezes vocês dizem que nos vêem como iguais e se preocupam conosco, que querem poder ajudar. Eu desafio vocês! Façam suas ações refletirem suas palavras.
Jacqueline é cartomante, quiromante, atriz, cantora, dançarina e secretária da União Cigana do Brasil.
(Fonte: União Cigana do Brasil)
Meu Nome é Jacqueline Vacite e
Sou Apenas uma Mulher Cigana
